O DESPERTAR DE WAYNE SHORTER

"Tente ensaiar viver no momento", me desafiou certa vez Wayne Shorter. "Não é possível, você simplesmente vive." O assunto, é claro, é a expressão de sua música, e do ato de estar no palco. "Isso é o jazz, todo o processo criativo. É uma das formas de arte em que é preciso estar no momento. Acho que os pintores fazem o mesmo quando pintam: é como se não houvesse ninguém por perto."

Chamar Wayne Shorter de "uma das maiores lendas vivas do jazz" é um daqueles clichês inevitáveis. Com longa carreira na música, solo e ao lado do grupo Weather Report, Shorter encontrou seu auge tocando com o lendário quinteto de Miles Davis, entre 1964 e 1970, quando presenteou o mundo com composições como "Footprints", hoje já escrita em pedra no cânone do jazz.

Aos 72 anos, veio ao Brasil em 2005 (com Danilo Perez, piano; John Patitucci, baixo; Brian Blade, bateria) para apresentações no Tim Festival, no Rio e em São Paulo. Por telefone de um quarto de hotel no Texas, onde se apresentava naquela semana, ele me falou sobre música e tudo que ela pode significar e fazer pelas pessoas.

Como são suas apresentações ao vivo?

Nós tocamos muitas músicas que não gravamos. E fazemos algo que chamamos de "continuação". Nós não ensaiamos, e tocamos músicas que inventamos na hora. Nós nos arriscamos. Nós chamamos isso de "lidar com o inesperado". Muitas pessoas nos Estados Unidos - com o furacão, Iraque e tudo isso - elas não sabem lidar com o inesperado. Não é algo ensinado nas universidades. Então, nós fazemos isso.

É como quando crianças saem para brincar. Elas improvisam. Em qualquer cultura, quando as crianças brincam elas fazem coisas que seus pais nem imaginam, ou que eles esqueceram. Os adultos não sabem mais fazer as coisas juntos, ao invés disso eles fazem guerras.

Quando as pessoas se visitam, o anfitrião sempre quer mostrar a casa limpa, os melhores pratos, os talheres de prata. Eles sempre colocam o seu melhor à frente. Mas quando você improvisa você tem que confiar em exatamente quem você é. Você se mostra pro mundo sem maquiagem, sem ensaio.

Miles [Davis] costumava dizer: "você já tentou tocar como se você não soubesse tocar?" Isso é lindo. Ele me dizia para esquecer minhas aulas de música.

Você tenta tocar assim?

Claro!

E soa tão bem como quando você toca sabendo tocar?

Quando tocamos juntos dessa maneira, aparecem muitas informações excitantes e ousadas. Estamos dizendo algo sobre realidade e ilusão. E há tantas ilusões pelas quais as pessoas chegam até a morrer, achando que estão dando suas vidas pelo bem da realidade. É como uma música familiar de três minutos. Elas fazem sucesso, dão dinheiro, algumas pessoas passam um longo tempo fazendo esse tipo de música. Elas estão criando uma zona de conforto, para onde as pessoas vão, elas se sentem bem com esse tipo de música e rejeitam tudo que é desconhecido. Tudo que é diferente é difícil de aceitar - como uma pessoa com uma aparência diferente é difícil de aceitar. Então, nós tentamos fazer música que fale sobre todas essas coisas.

Você acha que todas essas coisas podem ser percebidas através da música, mesmo instrumental?

Ah, sim. Às vezes me perguntam o que eu acho da música sendo feita atualmente. Me perguntam se eu ouço idéias novas. Mas na verdade eu não procuro por isso na música. Eu presto atenção na música e na pessoa fazendo a música. Eu presto atenção no fator humano, no inesperado, no desconhecido. Eu vejo se a música está falando de nobreza, daquela essência nobre que todo ser humano tem dentro de si, e que muitas vezes está dormente. Muitas pessoas não sabem como despertar sua nobreza, ou têm medo de despertar essa nobreza. Em música comercial, às vezes tentam colocar a nobreza na letra. Falam de coragem, de certo e errado, mas eles não vivem essas coisas. O desafio é fazer.

Que tipo de música você acha que tem essas qualidades?

Qualquer música pode ser assim. Você pode fazer música com qualquer coisa, se você não tem medo de ser criticado. Você pode criar sons com qualquer coisa, mas não adianta nada se você não sabe nada da vida. Pra mim, não faz diferença se a música é feita com panelas ou sintetizadores, se o autor entende a essência da vida. Senão, são apenas sons ao vento.

Então a música pode fazer diferença na vida das pessoas?

Sim! Hoje em dia, as pessoas perguntam o que vai acontecer, mas ninguém sabe o que vai acontecer. Mais do que em qualquer época da história, nós não sabemos como vão ser as coisas em cinco, dez, 20 anos. Então nós temos que nos desafiar com o inesperado, temos que aprender a buscar a sabedoria dentro do inesperado. Temos que ser abertos.

Música é uma maneira de expressar uma maneira de ver a vida. As pessoas levam para dentro de suas casas músicas que as fazem se sentir bem, porque elas querem fazer parte de um clube, mas esse clube comercial lida com uma coisa chamada simplicidade. E na realidade eu acho não há nada simples na vida. Palavras como "começo" e "fim" são artificiais. Vida e morte são uma continuação da vida. Algo que começa e termina é ilusório, há muito mais do que o que a pessoas aceitam, do que as satisfazem. E o que há além é o começo da sabedoria.

Todos perguntam quem são os novos heróis, quem são os sábios de hoje, mas as pessoas não perceberam que neste momento cada pessoa tem que despertar sua própria sabedoria. Então, ao invés de ouvir uma música que mantenha essa sabedoria dormente, é hora de ouvir música para despertá-la. Às vezes as pessoas dizem, "eu não sabia que eu estava dormente, mas eu ouvi Charlie Parker e acordei". Ou então despertaram ouvindo Igor Stravinsky, ou Villa-Lobos, ou Frank Sinatra, ou Tom Jobim, João Gilberto, Milton Nascimento. Muita gente vai despertar quando ouvir Elis Regina cantar. Ou a filha dela, Maria Rita. O que estou querendo dizer é que eu quero fazer música que diga: "a vida é uma aventura eterna".

Então você acha que as pessoas vão sair do seu show diferente de como chegaram?

Sim, mas eu não acho que todos estão dormindo e eu sou o único desperto. Eu também tenho que me despertar todos os dias, todos os minutos. Eu estou indo para o Brasil para me despertar!

(Folha de S.Paulo, outubro de 2005)