PEDRO SANTOS: MÚSICA E ESPIRITUALIDADE NA ESCALA DA VIDA

De onde viemos e o que ainda somos na escala da vida? A capa do LP Krishnanda, lançado em 1968 pelo percussionista e compositor Pedro Santos, tenta escalonar. Em uma colagem circular, espécie de mapa evolutivo, aparecem minérios, amebas, flores aquáticas, moluscos, peixes, anfíbios, larvas, insetos, aves e feras, ao redor de um grande gorila e um pequeno homo ancestral. Nas pontas, as mãos de Deus e do primeiro homem, detalhe recortado do afresco A Criação de Adão, de Michelangelo, da Capela Sistina, talvez simbolizando toda a vida que surge entre aquele quase toque de mãos.
Não é uma capa comum, como nada no disco em si e em seu autor era comum. Pedro Santos, também conhecido pelo nome do principal ritmo que inventou, Sorongo, era especial. Além de músico inventivo e grande ritmista que tocou com Hermeto Pascoal, Orquestra Tabajara, Maria Bethânia, Baden Powell, Clara Nunes, Jards Macalé e tantos outros, Sorongo era altamente espiritual. Presente neste mundo entre 1919 e 1993, expressava grandes pensamentos através de músicas, letras, escritos, desenhos, conversas. Comumente lembrado como “filósofo” por muitos que com ele conviveram, Pedro Santos criou obras muito além de qualquer escala evolutiva da música brasileira.
“SURGIR É SURGIR, MULTIPLICAR É FLORIR”
Hoje, quase 20 anos depois de sua partida e mais de 40 da gravação do álbum Krishnanda, seu pensamento musical e espiritual encontra ressonância renovada. O produtor Kassin, que lembra ter descoberto o disco em meados dos anos 90, comenta: “Pedro é um simbolo do experimentalismo brasileiro, um revolucionário. Acho quase inacreditável que ele tenha conseguido realizar esse disco.” A cantora Mariana Aydar, que costumava abrir seus shows interpretando solo “Um só”, de Pedro Santos, conta que fica sempre emocionada com a música de Sorongo. “É de uma profundidade ímpar, me leva a lugares muito nobres onde poucas músicas conseguem chegar”, explica. “Uma mistura de plenitude e medo.”
Pupillo, baterista da Nação Zumbi e do grupo Almaz, recorda ouvir Krishnanda pela primeira vez em um ensaio. “Foi um divisor de águas pra mim, pois Pedro Santos mostra nesse disco que um grande ritimista, além de pesquisar novos timbres e texturas, poderia criar melodias maravilhosas e mexer com palavras que complementam os temas com enorme maestria. A partir daí, me senti na obrigação de divulgar o trabalho desse grande artista para qualquer amigo músico que eu encontrasse, inclusive sugerindo acrescentar ‘Água viva’ ao repertório do show do projeto Seu Jorge e Almaz, que faria duas grandes turnês pelos Estados unidos e Europa.”
Em seu álbum de estreia, de 2011, a big band paulista de grooves afrobrasileiros Bixiga 70 regravou “Desengano da vista” de Sorongo. “O Pedro Santos tinha a capacidade de compor um tipo de canção que tem a ver com a poesia oriental, ideograma”, enxerga Mauricio Fleury, pianista do conjunto. “Ele escrevia músicas que parecem mandalas, que quando você olha de todos os lados é como se estivesse pra cima. Como fractais ou aquela famosa representação do yin-yang, uma geometria perfeita.” O cantor Ed Motta e o DJ Nuts, conhecidos garimpeiros de pérolas raras brasileiras, são outras figuras conhecidas por louvar o disco. Cereja do bolo, a fábrica de vinis e selo Polysom está relançando o disco em vinil de 180 gramas com remasterização a partir das fitas master originais. A gravadora SonyBMG deve também lançar o álbum em CD.
“VOCÊ É VOCÊ PRA ONDE FOR”
Quando Getúlio Vargas instaurou o decreto 10.358 em 31 de agosto de 1942, estava declarado o estado de guerra em todo o território nacional: nos tornávamos Aliados combatendo o Eixo. Entre julho de 1944 e fevereiro de 1945, foram enviados à Itália pela Força Expedicionária Brasileira mais de 25 mil soldados – e Pedro Santos estava entre os convocados. Pandeirista de adolescência, durante a Guerra continuava ligado à música, integrando a banda dos pracinhas tocando percussão.
Finda a guerra (que lhe deixou “emocionalmente abalado”, contou sua viúva), de volta ao Rio de Janeiro, não pôde fazer diferente: entendeu definitivamente que a música era o seu caminho. Trabalhando como porteiro de rádio, passou a conhecer importantes figuras e a elas mostrar seu toque e suas composições. Pela década de 50, viu gravados seus primeiros temas, os baiões “Marrocos”, “Recordando o Líbano” e “Dança da naja” (já mostrando influências de música africana e oriental) por acordeonistas como Mário Mascarenhas, Orlando Silveira e Manoel Macedo, além da voz de Michel Daud, então conhecido como “o cantor das 1001 noites”. Além disso, em pouco tempo estava tocando com músicos como Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e a principal formação instrumental de seu tempo, a Orquestra Tabajara de Severino Araújo.
Em 1960, pela gravadora Continental, o compacto duplo Sorongo Is Sensational, de Severino Araújo e Sua Orquestra, explicava que no Dicionário do Folclore Brasileiro de Luiz da Câmara Cascudo, encontramos “Sorongo” como “dança africana que os escravos trouxeram para o Brasil” e contava: “Pedro Santos, ritmista da Orquestra Tabajara, há seis anos idealizou um novo ritmo. Passou tempo burilando o referido ritmo enquanto procurava uma designação para ele. Depois de muita pesquisa, encontrou a definição e utilizou o nome “Sorongo”, porque, na verdade, o seu ritmo é uma variação do samba, que por sua vez é oriundo do batuque.”
Elza Soares, Angela Maria, Baden Powell e o regional do lendário chorão Canhoto foram alguns intérpretes da nova levada. “O ritmo nasce como nasce uma flor, como nasce um verso. Pedro dos Santos é o poeta que sonha, um sonho colorido de flores, e traz no peito um ritmo que é seu”, dizia a contracapa do LP Batucada, de Paulinho e sua Bateria, de 1961. Ao mesmo tempo, Pedro tornava-se cada vez mais mestre reconhecido das diferentes possibilidades de expressão percussiva. No selo do 78 rotações “Tanganyka”, de Altamiro Carrilho, podia-se ler um crédito à parte, “Efeitos Especiais: Pedro Santos”.
“QUEM DISSER QUE NÃO TEM VAIDADE, VAIDADE VEM”
Não apenas ele era mestre sonoplasta, perfeito reprodutor de sons dos animais da selva, como também dedicava-se a criar seus próprios instrumentos, como o bambussom e o sorongaio – que juntava em uma estrutura tambores com diferentes timbres, ideal para a execução de seu ritmo inventado. Bambus, chocalhos de água, berimbaus-de-boca, colheres, tubos de desodorantes, côcos e apitos plásticos também faziam parte de sua sonoridade, assim como caixas de fósforo, ganzás, tamborins, cuícas, tumbadoras, tambores, agogôs, pandeiros, bongôs e maracas.
“Ele usava os instrumentos de um modo muito único”, recorda o violonista Sebastião Tapajós, que em 1972 gravou dois álbuns em dupla ao lado de Sorongo. “Ele era empírico, não tinha uma educação formal mas sabia tudo de contar as entradas que tinha que fazer, os compassos etc. Ele botava o tamborim entre as pernas, pegava o reco-reco e botava no dedão, tirava sons que você não imagina. O pessoal ficava alucinado.”
Com enorme senso melódico e criatividade sem fim, sua abordagem no acompanhamento rítmico trazia uma concepção totalmente diferente de tudo que havia. “O Sorongo tinha muitos recursos como percussionista”, diz o contrabaixista e flautista Bebeto Castilho, do Tamba Trio, sobre os encontros musicais com Pedro. “Se entrasse um instrumento, ele ia para outros cantos e deixava livre aquele espaço. Quando entrava naquele espaço, é porque o outro estava fazendo outra coisa, cabia ele entrar ali.”
Bebeto continua lembrando: “Pedro Sorongo, que ser humano. Ele parecia que brilhava, com um jeito calmo de falar. Ele sempre chegava e apaziguava. Quando as coisas começavam a esquentar, ele calava a boca e aí de repente dizia uma frase estratégica, pequena mas muito sábia. Se tivesse alguém nervoso, esse alguém iria ficar calmo.” Musicalidade sem limites, filosofias próprias, aura zen, homem de pensamento livre e qualidade únicas. “Quando eu conheci o Pedro ele apareceu já cheio de novidades. De percussão e de tudo: da vida mesmo”, conta Sebastião Tapajós. “O Pedro sempre colocou isso na frente de tudo, o lado espiritual dele. Diferente, sabe. Ele foi uma pessoa diferente. Ele era um cidadão totalmente diferente. Simples demais. Maravilhoso, o Pedro. Foi muito gratificante conhecê-lo.”
“EU SOU DE UMA PORÇÃO QUE NEM PÓ, DE UMA PORÇÃO DE UM SÓ”
Não existem questões maiores na filosofia. Há quanto tempo o homem se pergunta quem sou, de onde venho, para onde vou? Se em nossa vida na Terra começamos como células únicas há 4 bilhões de anos e há meros 200 mil anos andamos de coluna ereta com nosso polegar opositor, o que ainda nos tornaremos, que caminho a vida na terra ainda seguirá? A grande capacidade da vida é a evolução. Em 1968, em entrevista ao jornal Correio da Manhã, Pedro dizia: “O círculo da vida impõe ao homem renovação, começando sempre em cada geração que surge, para melhor ressurgir nas gerações que vêm, obrigando a humanidade a encetar o caminho que sempre foi, mostrando a todos que todos são apenas um.” Na mesma matéria, a existência de Deus era definida “como a gente mesmo, nós é que fazemos Deus de acordo com o que somos ou representamos na vida”.
Para Pedro Santos, a revolução pessoal foi movida pela descoberta da ioga, da macrobiótica, do aprofundamento da filosofia indiana. Largou o emprego de músico fixo na TV, passou a manufaturar ao lado da esposa baquetas e bolsas para instrumentos e, ao longo de duas semanas em 1968, no estúdio da gravadora CBS, Sorongo canalizou seu máximo de musicalidade e espiritualidade em três canais de gravação. A convite do produtor Hélcio Milito (fundador e baterista do Tamba Trio, conjunto batizado com o nome de instrumento de percussão criado por Milito e inspirado por Sorongo), Pedro criava sua obra-prima Krishnanda, cruzando mensagens espiritualmente elevadas com sonoridade totalmente sui generis, original de si própria, incategorizável, momento único na música produzida no Brasil.
Envolvendo as letras existencialistas, a paisagem é de climas amorosos e selvagens, sons misteriosos de um Brasil pré-sintetizadores, infindade de brinquedos percussivos, marimbas, a voz rouca de Pedro acompanhada de coros femininos e ocasionais cordas, pianos, violões, guitarras e arranjos de sopros transcritos de suas ideias pelo maestro Pachequinho, assinando com o pseudônimo Jopa Lins. O tutor de Sorongo na ioga, professor Hermógenes, em recente matéria de Pitzan para a revista Yoga Journal, buscou explicar o título do álbum: “Etimologicamente parece que é ananda, felicidade suprema, gerada por Krishna, que é um avatar, a encarnação divina na Terra do mais puro amor”.
“AZAR OU SORTE DE QUEM MULTIPLICA E SOMA”
“É muito interessante como ele trabalha em colaboração, sempre somando”, observa Mauricio Fleury, do Bixiga 70. “A obra dele não se resume aos discos que ele assina, tem composição dele em vários discos de outros artistas e, às vezes, ele aparece só como instrumentista mesmo. É brilhante isso, um artista que, mesmo com tantas idéias, não estava fechado numa bolha. Pelo contrário, atuava diretamente no cenário musical, por isso sua obra vai vir mais e mais à tona conforme os anos forem passando. Vai sempre aparecer coisa que ele gravou, idéia que ele deu, instrumento que ele criou.”
A redescoberta de um grande artista carrega sempre a simbologia de novos caminhos que se abrem, novas possibilidades como que descongeladas do tempo e oferecidas aos novos contextos. No caso de Pedro Santos, seu Krishnanda e toda sua obra, é mais que uma reavaliação cult. Sorongo pensava e dizia coisas tão pontuais, tão únicas e tão certeiras, que com ele vem o poder de suas ideias e os novos aprendizados por elas oferecidos. Você vai ouvindo, vai ouvindo, e de repente a ideia já está dentro de você e te transforma.
(Revista Trip, novembro de 2012)