NOVA E VELHA VANGUARDA

Por trás não havia gravadora multinacional, rede de TV, edital público, patrocínio estatal, conceito unificador nem estética definidora. Não havia manifesto nem organizador, não era um movimento. No entanto, era uma movimentação criativa – individual e coletiva – que não poderia passar despercebida, e logo passou a se conhecer pelo rótulo conjunto de Vanguarda Paulista. Do reggae-funk de breque de Itamar Assumpção ao erudito com influência de quadrinhos de Arrigo Barnabé, do canto falado do Grupo Rumo ao humor universitário do Premeditando o Breque, passando por todas as características particulares de tantos vários outros cantores, compositores, músicos, conjuntos que se reuniram ao redor do teatro e selo alternativo Lira Paulistana, idiossincrasia era o lugar comum.

“O Lira Paulistana começou como um pequeno teatro”. lembra Riba de Castro, um dos fundadores do Lira, desenhista dos pôsteres na época e diretor do recente documentário Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista. “Mas como a gente estava em Pinheiros, próximo à Vila Madalena, à USP, à PUC, no meio de estudantes e artistas, o pessoal começou a procurar a gente pra ocupar o espaço. Depois começou a virar praticamente um espaço musical, por causa da própria demanda, um processo natural. Foi um catalizador de tudo aquilo que estava perdido, sem ter para onde ir. Como a cultura oficial não dá espaço pra ese tipo de aventura, pra esse tipo de novidade, o Lira passou a ser esse espaço. O Lira teve essa sorte de surgir no momento ideal e oferecendo as condições que as pessoas estavam necessitando: um espaço barato e onde todo mundo podia apresentar o seu trabalho.”

Trinta anos depois, não temos movimento, mas a movimentação segue intensa e as produções individuais e coletivas desenham novos mapas de São Paulo e renovam influências da Vanguarda e além. Unidos pela intimidade com a produção independente, uma geração contemporânea oferece novas possibilidades de leitura do que foi criado, absorvendo o modus operandi vanguardista de entortar tradições, inventar maneiras, subverter expectativas e colocando os entendimentos pra fora de maneira própria. A ligação é genética e de criação, mas a naturalidade com que as características da Vanguarda transparecem em seus trabalhos renova os contextos e redimensiona os discos, composições, figuras, imaginário da época.

O novo já não choca mais. Sempre diferente, a Vanguarda está viva. Um pouco nos dubs e ritmos falados no disco de estreia, lançado no ano passado, de Anelis Assumpção, filha de Itamar. Outro tanto nos dois álbuns de Tulipa Ruiz, com seus agudos, sua influência de Tetê Espíndola e Grupo Rumo e seu guitarrista, – seu pai -, Luiz Chagas, que tocava com Itamar. Influência de Grupo Rumo também sofre a Trupe Chá de Boldo, com seu mais recente disco produzido por Gustavo Ruiz, filho de Chagas, irmão de Tulipa. Algo também está presente na graça da banda O Terno, de Tim Bernardes, filho de Mauricio Pereira, d’Os Mulheres Negras. E na voz lírica de Laura Lavieri, filha de Rodrigo Rodrigues, do Música Ligeira. Mais um pouco na música de Mariana Aydar, filha de Mario Manga, do Premê. E de Iara Rennó, filha de Alzira Espíndola e Carlos Rennó, e de Marina Wisnik, filha de José Miguel Wisnik.

AVANT-GARDE
“Eu acho muito curioso existir o interesse de uma geração jovem pelo movimento, pela forma, e por agora transformar isso em outras coisas”, observa Anelis. “Particularmente comigo, é uma pressão delicada: eu sou a filha do Itamar. E ainda por cima ele morreu. Então existe uma expectativa, uma tendência em me classificar como continuação. Na verdade, eu não acho que eu faça música vanguardista, mas minha música está absolutamente imersa nisso.”


Gustavo Galo, compositor e um dos 13 membros da Trupe Chá de Boldo, comenta: “A Vanguarda não é exatamente um modelo, porque era uma multiplicidade louca. Mas com a gente existe uma certa proximidade com o que aconteceu no Lira. Uma proximidade inclusive física. A Trupe começou na casa do Dan Leite, filho do Geraldo Leite, do Rumo. Além de ensaiarmos lá, uma parte da banda estudou música com o pessoal do Rumo.”
A musicalidade discursiva, os jogos poéticos, o caráter lúdico, a relação com a cidade são alguns dos principais aspectos relidos e reinterpretados pelos filhos da Vanguarda, além de um certo deboche na abordagem para com a mídia e o próprio papel de artista. Todos elementos fundamentais na análise da música de então e de hoje, mas contemporaneamente relidos sem a aura de experimentalismo ou de “difícil” que havia. Ou seria o nosso tempo que mudou? Só hoje estamos preparados para entender a Vanguarda?

“Eu aprendi a cantar ouvindo Grupo Rumo”, lembra Tulipa. “Quando eu era pequena eu ouvia e ficava embasbacada com aquele cruzamento de palavra, melodia, projeto gráfico, todos juntos, parecendo tão amigos e pessoas tão legais. E desde pequena eu sabia da existência do Itamar, do Premê. Eu sabia que tinha aquele conjunto de discos da galera de São Paulo, e sabia que eram coisas diferentes. Um dia minha mãe me explicou o sentido da palavra vanguarda, e eu pensei ‘ah, então as pessoas só vão entender isso daqui alguns anos’.”

FAÇA-VOCÊ-MESMO
“Era a virada dos 80, estava no auge o punk, a ideia do do-it-yourself, ‘vamos fazer nossos discos’”, contextualiza o guitarrista então de Itamar e hoje de Tulipa, Luiz Chagas. “Mas era muito mais difícil. Hoje você pode ser independente, não tem ninguém te oprimindo, você que se vire. Na época você não era só independente, você era contra a gravadora e tinha a gravadora contra você. Estar à margem fazia parte: ‘a gente vai fazer sucesso por nós’. Mas era um paradoxo: o sucesso só existe se existe a indústria. Sucesso por si próprio, no vácuo?”


“Na época se faziam as coisas pela necessidade de fazer”, conta Anelis. “Os caras pegavam seus lambe-lambes e iam colar pela cidade, não existia produtor, assessoria de imprensa. Hoje a internet abriu mesmo o portal. Os novos artistas já trazem influências de muitas coisas, por simplesmente terem muito mais acesso. Terem se formado com muito mais acesso. Pra ouvir música na minha adolescência, com meu pai, a gente estava restrito à meia dúzia de vinis que tinha em casa e à FM.”

Não existe linha evolutiva, mera bravata dos medalhões funcionários de gravadoras. A música brasileira se renova todos os dias, para muito além dessa visão monopolista. Se na era da difusão pela internet o mosaico que se insinua é grande, a Vanguarda foi como uma implosão de possibilidades em estilhaços para o futuro. Ou melhor, presente. “Na verdade, as coisas chamadas de vanguarda acabam sendo absolutamente atuais sempre”, nota Tulipa. “Elas não estão à frente do tempo – elas são atuais sempre. Por isso elas fazem tanto sentido hoje, porque são meio atemporais, elas não ficam datadas. Não expiram.”

(Revista Bravo!, setembro de 2012)