GAL COSTA & CAETANO VELOSO: SOB AS ESTRELAS DA BAHIA
Sentados lado a lado, cada um em uma ponta de um sofá bege de listras marrons no camarim de um estúdio fotográfico em Salvador, Caetano Veloso, 68, e Gal Costa, 65, tem 50 anos de história para lembrar. Caetano senta-se reto, atento; Gal está à vontade, com as costas fundas no sofá. Passeando entre os muitos pontos de intersecção em duas carreiras sempre próximas e distantes, falam dirigindo-se tão frequentemente um ao outro quanto a mim, sentado em uma cadeira de frente para os dois. Enquanto reconstroem memórias em par, completam as frases mútuas com intimidade além daquela de namorados ou irmãos, mas de amizades que se orbitam, não importa quantas vezes o planeta gire. Se amizade é identificação, confiança, comunhão de raízes, empatia ilimitada, amigos são mais do que a família que escolhemos, são aqueles que continuam nos conhecendo quando mudamos.
Alguém entra na sala, traz água de coco para Gal e sai. Caetano cruza as pernas embaixo de si, no sofá. Estamos aqui por uma ocasião especial: Caetano, vindo de uma fase especialmente carregada de frescor, depois dos discos  e Zii e Zie (e um ao vivo com Maria Gadú, vá lá), se viu tomado por inspiração para desencadear um processo semelhante com Gal, compondo todo um disco para ela e direcionando as gravações (se nada mudar, o álbum, previsto para setembro, deverá se chamar Doce). A última vez que ela entrou em estúdio para fazer um álbum foi em 2005 – Hoje, lançado pela gravadora Trama. O novo disco terá o apoio da gravadora Universal, que também lança os discos de Caetano e recentemente compilou os LPs de Gal gravados entre 1967 e 1983 em uma caixa com 16 CDs.
Gal e Caetano estão apreensivos, em pleno processo de finalização do álbum: faltam poucos dias para terminarem de registrar as vozes definitivas no estúdio de Carlinhos Brown, no Candeal. As bases já foram gravadas no Rio com a ajuda de Moreno Veloso – filho de Caetano e afilhado de Gal – e com participações de jovens músicos cariocas. Assim que o último rec virar stop, os arquivos de áudio ganharão mixagem, masterização, título e capa. Hoje, sábado nublado de junho, estamos na Bahia para falar do passado no presente – Bahia que já existia em mim através das músicas e agora se materializa no momento vivido e no cenário de lembranças do compositor e da cantora.
“O Caetano para mim é muito importante por tudo que a gente viveu e conviveu”, Gal começa. “Por tudo que ele compôs, tantas músicas que ele fez para mim, direcionadas a mim, falando para mim. Eu adoro as canções de Caetano. Ele é o compositor que melhor escreve para mim, para a minha voz, para mim mesmo. A gente tem uma identificação musical. Neste momento, Caetano fazer este trabalho comigo é maravilhoso. É muito importante historicamente e emocionalmente.”
Caetano, propulsor da ideia há um ano e meio, quando pela primeira vez contou a Gal do novo projeto, explica que a vontade deste álbum nasceu de pensar na história da presença de ambos na música e na história da própria música brasileira. “Gal tem uma qualidade de emissão vocal muito especial e um papel histórico muito importante, e as duas coisas estavam relativamente subvalorizadas nos últimos tempos”, reflete. “Tenho necessidade de ter uma visão histórica mais equilibrada, e isso me pareceu como uma necessidade para mim mesmo e tenho certeza que para os outros também. Então fiquei com desejo de fazer o repertório e produzir um disco todo para Gal. Me interesso muito por fazer este disco agora, para reequilibrar a visão histórica.”
Gal, entretanto, deixa claro que em nenhum momento a ideia foi homenagear o que houve, mas sim o que ainda há para haver. “Não vai ter nada a ver com nenhum disco que eu já fiz na vida, nem com nenhum disco que ele já fez na vida”, explica. “Vai ser uma coisa nova, repertório novo, tudo novo, mas é claro que tem a ver com passado porque a nossa história está impregnada na gente.”
***
Maria da Graça, então com 17 para 18 anos, era uma jovem devota de João Gilberto com um desejo irredutível: iria ser cantora. Naquela adolescência em Salvador, a coisa mais importante que poderia lhe acontecer era conhecer pessoas com quem dividir os sonhos e planos. “O Caetano foi o primeiro cara que me ouviu cantar”, lembra. ”Foi a primeira pessoa, na verdade, que gostou de mim, do meu canto, se identificou com isso. Eu ainda muito nova, querendo ser cantora, e ele gostou logo do meu jeito de cantar, me passou uma música dele, que depois gravei. Começou daí, ele foi o primeiro compositor que conheci. Foi o primeiro gás para mim, a primeira força, como um aval.”
Caetano, também totalmente joãogilbertiano, então com 20 anos e mais pretensões de compositor do que cantor, lembra os detalhes. “A Gal conheci em 1963 em Salvador, por sugestão de Laís Salgado, amiga minha professora de dança”, remonta. “Ela me disse que uma aluna dela tinha uma vizinha que cantava lindamente, parecido com as coisas que eu gostava. Então ela marcou um encontro na Escola de Dança e me apresentou a Dedé, sua aluna – com quem terminei me casando -, e Dedé me levou a Gal, que conheci e achei que cantava realmente divinamente. Ela era novinha e era tímida assim, retraída. Achei que ela cantava magnificamente bem e falei para ela: ‘você é a maior cantora do Brasil’.”
Afinidades expostas, não demorou para virarem uma turma e, pouco depois, em 22 de agosto de 1964, ao lado do também novo amigo de ambos Gilberto Gil, da irmã de Caetano, Maria Bethânia, e mais outros quatro jovens músicos baianos, realizarem no Teatro Vila Velha o espetáculo coletivo Nós, por exemplo, primeiros ensaios artísticos de todos em um “show de bossa nova”, como dizia o programa. Ainda demoraria mais um par de anos para a turma desabrochar e tornar-se conhecida nacionalmente, mas já no ano seguinte Maria da Graça gravaria seu primeiro compacto, pela gravadora RCA, cantando no lado A “Eu vim da Bahia”, de Gil, e no B a tal primeira música ensinada a ela pelo autor Caetano, “Sim, foi você”.
Dori Caymmi, filho carioca do ícone musical maior da Bahia, foi quem produziu em 1967 o primeiro álbum cheio de Gal e Caetano, que debutavam juntos no mundo do Long Playing. Gravado no Rio, Domingo é um disco suave e doce, de bossa tardia e com leve gosto de Bahia, encantador até hoje. A maioria das canções não passa da faixa dos dois minutos e ainda assim seguem todas tranquilas, tomando o seu tempo, pairando no ar e invadindo os espíritos sensíveis, como logo na faixa de abertura, o dueto “Coração vagabundo”. Gal, cantando “Avarandado”, não deixa dúvidas da enorme e charmosa timidez que sentia e nem da perfeição das delicadas composições iniciais de Caetano para sua voz cristalina.
Desde aquele primeiro momento, as personalidades e musicalidades se enriqueciam mutuamente, se completavam. Na contracapa de Domingo, Caetano escrevia: “Gal participa desse qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. […] Desde a Bahia que nós cantamos juntos, desde lá que ela faz com que meus sambas existam de verdade. Não há defasagem de tempo entre a composição e o canto: cada interpretação sua tem a mesma idade da canção. Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de “Gal interpretando Caetano” mesmo nas faixas em que ela canta músicas de outros autores ou quando sou eu mesmo quem canta as minhas. Gal cantando o que quer que ela goste, isso já é minha música, e quando eu canto ela está presente.
***
Gau era o apelido íntimo, a maioria das pessoas a chamava de Gracinha. Maria da Graça era o que aparecia na certidão de nascimento e nome artístico, mas o empresário Guilherme Araújo, então cuidando de todo o grupo baiano, não via ali nome de uma artista moderna. Pensando na cantora francesa de yê-yê France Gall, pegou o apelido de Gracinha e trocou o u por l para deixar mais universal: Gal. “O Guilherme Araújo dizia que a Gal tinha todos elementos para ser uma figura do iê-iê-iê mais moderna, de uma maneira sofisticada”, lembra Caetano, sobre as ideias do empresário. “Como se fosse uma SuperWanderléa.”
“É, Guilherme me falava isso”, Gal concorda. “Dizia que eu tinha que fazer uma coisa mais de iê-iê-iê.” Caetano nota: “Era interessante porque ele estava falando isso sem saber que eu estava com minhocas na cabeça para algo que no fundo era parecido com aquilo. As transformações que a gente achava necessárias acontecerem na música popular brasileira, que veio dado ao Tropicalismo. Aquela expressão aparentemente superficial tinha uma intuição profunda.”
Em vários aspectos, pode-se argumentar que o primeiro LP solo de Gal, gravado em 1968 e lançado no começo de 1969, é o primeiro disco pop brasileiro. Ao lado dos primeiros álbuns dos Mutantes, provavelmente o ápice do tropicalismo como proposta prática, com uma perfeição que não há em qualquer outro disco do movimento – coletivo ou de Caetano ou de Gil. Carregado de signos sob encomenda para o imaginário pop, com uma aura de vanguarda casual, o álbum é em si mesmo uma obra plenamente bem definida, pessoal e universal. Em cada música e na fluência com que se apresentam, do começo ao fim. Desde a capa, com foto em close no rosto perfeito de Gal, olhar perdido em algo à sua direita e à nossa esquerda, envolvida em um boá de plumas brancas e em seus próprios cabelos escuros e cacheados.
Todo levado pelos arranjos expressivamente originais de Rogério Duprat, Gil e Lanny Gordin, o disco abre com ruídos e o iê-iê-iê romântico e esperto “Não identificado”, de Caetano, e logo segue com o coco “Sebastiana”, de Jackson do Pandeiro, reinventado por guitarras e sarro. Metais com surdina e cordas sustentam o clima de “Lost in the paradise”, um Caetano em inglês, e na sequência a voz de Gil e a guitarra ultrafuzz de Lanny anunciam o groove de “Namorinho de portão”, de Tom Zé, com Gil assobiando ou fazendo contracanto por toda a faixa.
A bossa antropofágica “Saudosismo”, de Caetano, começa com os primeiros versos de “Fotografia”, de Tom Jobim, cita “A felicidade”, “Lobo bobo”, “Chega de saudade”, e fala de “João girando na vitrola sem parar”. De seu começo suave ao fim apoteótico de noises (mais Lanny), homenagem ao mesmo tempo que carta de intenções de novas propostas sobre velhos pilares. Nova bossa velha, velha bossa nova.
Canção então novíssima de Roberto (e Erasmo) Carlos, ainda mais na pegada do que já era o original, “Se você pensa”, tem ataque de sopros, guitarras nervosas e virada de bateria. Abrindo o lado B, outra de Erasmo/Roberto, inédita especial para a ocasião, na mesma inspiração de libertação, “Vou recomeçar”. “Divino, maravilhoso”, parceria de Caetano e Gil feita especialmente para Gal representar o tropicalismo em Festival da Record, é outra canção exalando vontade de vida: “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.
Caetano canta com Gal a pérola de Jorge Ben “Que pena (ele já não gosta mais de mim)”, um dos hits de rádio do disco. A faixa seguinte é outra com presença de Caetano, cantando e na composição, mais famosa do disco e, talvez, de toda a carreira de Gal: “Baby”, maior hit do então lançado há pouco LP-manifesto da Tropicália, aqui na mesma gravação. Começo com baixo, percussão e violão, arranjo de cordas em cascata, Caetano ao fundo contracantando “Please stay by me, Diana”, a voz cristalina de Gal cantando sobre a piscina, a margarina, a Carolina, a gasolina, o sorvete, aquela canção do Roberto, leia na minha camisa, o refrão em inglês: praticamente um manual hipster da época.
A fanfarra feelgood de Gil com letra de Torquato Neto “A coisa mais linda que existe” (spoiler: ter você perto de mim) fala de sair por aí, do jornal, do apartamento, da cidade, da praça, da noite na noite escura, da sorte que o vento espalha. Terminando no pique good vibe, outra de Jorge Ben, “Deus é o amor”, com balanço de violão, bateria e flauta inspiradas, refrão pra cima e voz apaixonantemente doce.
“A Tropicália fazia muito parte do momento em que foi lançada”, observa Gal. “Era o momento hippie, tinha os Beatles, Janis Joplin, fazia parte dessa linguagem. Ela foi importante em termos estéticos, agregou novos instrumentos, uma nova linguagem, e resgatou coisas maravilhosas, artistas como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro – que eram geniais mas não eram considerados no sul do país como grandes nomes da música brasileira mais sofisticada. A importância da Tropicália foi nesse aspecto estético e comportamental, fazia parte de um momento mesmo.”
Dividindo o momento, é claro, a figura-mestre na instauração do movimento e amigo mais próximo: no saldo final do álbum solo de estreia, cinco canções de Caetano – uma a mais do que Gal havia cantado em Domingo. “Todo o movimento tropicalista teve uma colaboração e uma participação intensa e muito expressiva de Gal”, conta Caetano. “O disco que ela gravou no período tropicalista. A apresentação de ‘Divino Maravilhoso’ – que é inesquecível, que qualquer um pode ver no YouTube. Aquilo era o avesso da bossa nova, como todo tropicalismo era, mas que a Gal justamente era capaz de realizar com uma plenitude total.”
***
Na prática, o tropicalismo durou menos de dois anos, apesar da ampla longevidade de sua influência: no dia 27 de dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos pelo governo militar, passaram dois meses em solitárias celas de um quartel, quatro outros sem poder sair de Salvador e, finalmente, foram convidados a sair do país. Em julho de 1969, partiram. Em Londres, onde fixariam residência pelos três anos seguintes, ampliaram o contato com o pop internacional e produziram grandes obras, mas ao longo de um período particularmente triste. Por aqui, de repente sem os parceiros mais íntimos, Gal se viu com todo um movimento sobre seus ombros.
“Eles foram exilados e eu fiquei aqui defendendo as canções que compunham em Londres”, lembrou Gal em uma conversa, uma tarde em um hotel em São Paulo, algum tempo antes do nosso encontro em Salvador. “Tem um disco que eu me lembro que era esteticamente agressivo, eu quase não cantava, eu berrava. Aquele disco que tem uma pintura na capa é o verdadeiro disco radical, intocável no rádio, totalmente experimental. Eu grito, uso sons estranhos com a voz. Mas era uma coisa pensada, racionalizada, feita a sério, não era loucura. Nunca fui chegada a droga, aquilo não era porque eu estava doidona. Era uma forma de reclamar, de ir contra aquele momento difícil, aquele regime da ditadura, os amigos desaparecidos. Era um comportamento proporcional, como se eu estivesse gritando socorro, berrando, reclamando. Fiz porque era necessário fazer, uma forma de gritar contra tudo que acontecia naquele momento.”
“Você precisa saber que Gal Costa é um dos acontecimentos mais importantes da música brasileira de hoje”, escrevia, adivinhe, Caetano, no release do segundo LP solo de Gal, aquele que tem uma pintura na capa. “Na Bahia havia a Graça e uma sala profunda, enraizada, recôncava de cachoeiras mortas, uma voz guardada apenas ali, absoluta. Gal nunca teve medo. Eu não tenho medo de saber que é difícil para o artista assumir sua própria grandeza”, seguia. No mesmo texto, ainda dizia: “Não acredito que alguém ainda tenha medo de guitarras elétricas. WOW!”
Entre guitarras elétricas e gritos, cercada de Duprat, Lanny e Jards Macalé, Gal protesta cantando dois novos Caetanos, três novos Gils, dois Jorge Bens, uma de Macalé e novo auge pop em nova composição especial de Roberto e Erasmo, “Meu nome é Gal”. Em trecho declamado, assina: “Meu nome é Gal, tenho 24 anos. Nasci na Barra Avenida, Bahia. Todo dia eu sonho alguém pra mim. Acredito em deus, gosto de baile, cinema. Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Macalé, Paulinho da Viola, Lanny, Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat, Waly, Dircinho, Nando e o pessoal da pesada. E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar, não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem.
***
“O chato é que a gente não pode falar mal de ninguém com esses microfones”, sussurra João Gilberto, para risos de Caetano e Gal. Os três estão em um estúdio no prédio da TV Tupi, onde hoje fica a MTV, em São Paulo, entre microfones, almofadas, garrafas de coca-cola e mesa de ping-pong. Caetano veio especialmente de Londres para gravar o especial de TV que reúne os três e vai ao ar em agosto de 1971. Os dois fãs já tinham tido oportunidade conhecer João na Bahia há alguns anos, mas aqui estavam convocados pelo ídolo máximo para uma troca direta e pública: mais que reconhecimento profissional, marco pessoal. Para quebrar o gelo, de saída, cantam juntos por 15 minutos “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi, e falam sobre a terra natal.
“Tive uma ideia genial, posso dar?”, pergunta, de repente, Gal. “Pode, eu não tenho ideia nenhuma”, responde Caetano, tímido. “Da gente – nós três – cantar ‘Coração vagabundo’”, sugere ela. “Espetacular”, se anima João. “Mas eu tenho que aprender a harmonia.” Caetano se emociona: “Não faça isso…”, suspira. “Caetano sabe”, encoraja Gal. “Caetano sabe? Então me mostra.” Diante de João, Caetano hesita – “tocar violão com você eu sempre acho um absurdo” -, mas aquiesce. “Eu toco como eu fiz a música, faço assim”, diz, antes de respirar fundo e começar: “Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer…”
O simbolismo emocional é enorme: desde a primeira conversa que tiveram na vida, aquele dia em Salvador em 1963, o mais forte elo de união fora João Gilberto. “A gente sabia tudo de todos os três primeiros discos dele, conhecia todas as canções, sabia em que ordem vinha”, detalha Caetano. “Tudo, sabia os arranjos, a respiração de João”, emenda Gal. “Eu ouvia e aquilo me arrepiava inteira.”
Não era à tôa que, três meses depois do encontro na Tupi, Gal começava seu novo show, Fatal – A Todo Vapor, só, com o violão. “Na época do Fatal, eu estava com João quase diariamente”, explica. “Ele morava numa rua paralela à que eu morava e a gente todo dia se encontrava, fazia música e cantava, ele cantava, eu cantava.” No repertório do começo acústico do show aparecia “Falsa baiana”, antigo samba de Geraldo Pereira, dos compositores favoritos de João – ele próprio gravaria a canção pouco depois. Gal lembra que João chegou a aparecer em uma apresentação (“ele foi ver escondidinho num canto, assistiu lá atrás, ninguém viu e ele saiu antes de acabar”) e é delicioso imaginar o marco histórico do mestre do silêncio João Gilberto assistindo o ponto máximo da distorção na música brasileira na guitarra de Lanny Gordin – que fazia os arranjos e tocava com seu trio na segunda parte do show, indo ainda além das experimentações em disco. Apresentado no teatro Tereza Rachel, no Rio, injeção na veia do zeitgeist, marco da geração do desbunde, A Todo Vapor foi uma revolução para Gal.
***
Assim como, menos de dois anos depois, com os amigos de volta, Índia foi uma revolução. A capa um close de suas partes baixas cobertas por um biquini mínimo, a contracapa exuberantemente revelando seus seios sob uma fantasia de índia, a timidez dava lugar à diva hippie. Da mesma forma que Água Viva, alguns anos depois, era uma tremenda novidade, uma ampliação do foco, pela primeira vez com interpretações de canções de emepebistas como Chico Buarque, Ivan Lins, Gonzaguinha e Milton Nascimento (e ainda Caetano, claro). Discos que vieram depois, como Gal Tropical e Fantasia, já no fim dos anos 70/começo dos 80, já traziam hits extremos como “Balancê” e “Festa do interior” e corriam o risco de ver Gal acusada de careta, mas o álbum Baby Gal foi uma revolução, guinada pop. Resumindo: Gal passou por muitas reinvenções.
“O mundo muda e a gente muda também com o mundo, senão fica estagnado”, avalia. “Nós somos máquinas de mudança, sempre vendo coisas que fazem transformar. Você ficar igual o resto da vida é horrível. O barato é você mudar, se gostar. Tem coisas que eu não gostava na década de 70 e hoje gosto. Tem coisas que eu gostava e hoje detesto. É assim, a vida é uma eterna transformação. Esse é o barato da vida, de viver. E isso é fundamental, pra vida e pra arte. Quando o trabalho de um artista é verdadeiro, ele fica pra sempre. E isso vai se se revelando através de sua alma, de seu caráter, do seu jeito. O trabalho de um artista é um espelho da alma dele.”
De “Baby” a “Tieta”, Gal Costa cantou mais Caetano Veloso do que qualquer outro compositor. Em todos os seus discos, sem considerar os tributos temáticos, há ao menos uma canção dele. De Caetano, Gal já cantou frevos, bossas, sambas, canções, marchas, baiões, rocks, de amor, de saudade, de tristeza, de contemplação. Períodos especiais de luz em sua discografia surgem com participação dele, como no único álbum que produziu da amiga, o delicado álbum Cantar, em 1974, com o piano de João Donato. Ou nas canções feitas para ela e sobre ela, como “Minha voz, minha vida”, “Vaca profana” e “Da maior importância”.
“Eu e Gal sempre brochamos todas as vezes que tentamos brincar de namorar”, escreveu Caetano, entre reminiscências. “No início de nossa carreira, dividíamos a cama de casal de Guilherme Araújo em Sampa. Todas as noites eu tentava seduzi-la com um disco de Bob Dylan e papo-furado. Ela sempre resistiu e terminávamos as noites às gargalhadas.” Ele está comentando fotos de Gal em ensaio nu & capa da revista Status, 1985. Todo mundo viu o que todo mundo sentia: tamanha empatia, identificação, admiração, relação não viria sem boa dose de paixão, ainda que cinquentenariamente platônica.
***
O que sempre lembram quando pensam no primeiro disco que gravaram juntos há 45 anos,Domingo, é quão cedo tinham que acordar: antes das sete. Estreantes tímidos, sobravam com os horários indesejados pelas estrelas da gravadora, que gravavam pelas tardes e noites. Uma tortura para os dois jovens baianos acostumados a não levantar cedo. “Eu costumava dormir muito tarde e acordava uma da tarde”, lembra Gal. “Eu sou assim ainda”, emenda Caetano, rindo. No estúdio de Brown, gravam as vozes de Gal das quatro da tarde às dez da noite (embora só falte uma ou duas sessões e à altura que você estiver lendo isso eles já estarão pensando no passo seguinte). Hoje, Gal tem um filho, Gabriel, cinco anos, que adotou há quatro – daí os horários mais tradicionais de ultimamente. Mas, assim como as estrelas são passado e arte é para sempre, as sensibilidades e conexões não sofrem defasagem de tempo, cada interpretação com a mesma idade da criação.
Uma das canções não-inéditas do disco todo novo é “Madre Deus”, escrita por Caetano e gravada por José Miguel Wisnik para a trilha do espetáculo Onqotô, do Grupo Corpo, em 2005. “A letra fala de uma experiência minha”, conta Caetano, inclinando-se para frente no sofá bege de listras marrom, falando para mim e ao mesmo tempo para Gal. “De quando era adolescente deitar à noite no ancoradouro de Madre Deus – que é uma ilha aqui na Bahia de Todos os Santos – e ficar vendo o céu todo estrelado. Eu sentia que ia me desprender da terra, sentia mesmo, uma sensação bem forte, e fiz a música por causa disso. Eu nem me lembrava dela, mas o Zé Miguel, sabendo que eu estava fazendo disco para a Gal, me disse: ‘você devia botar ‘Madre Deus’, porque eu tive uma conversa com Gal faz pouco tempo em que ela me descreveu que ela própria teve experiência exatamente igual a esta sua’. Não no ancoradouro de Madre de Deus, no chão de um pátio, mas de olhar para um céu estrelado e sentir essa mesma vertigem.”
Estamos todos sob as estrelas do céu da Bahia.
(Revista Rolling Stone, julho de 2011)